segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Fialho, Odorico e Dias: uma amizade improvável

O primeiro, um português agricultor alentejano que se torna escritor. O segundo, personagem, com linguajar parecido com o primeiro, mas criado pelo terceiro. O terceiro, um escritor brasileiro que criou um dos mais célebres personagens da literatura e da dramaturgia brasileira, e, quem sabe, inspirado no primeiro. Está estabelecida a ligação improvável entre eles.

Três existências. Dois cronistas de dois países. Fialho, chamado de “o escritor da “comédia” da vida portuguesa”. Dias Gomes, o escritor da comédia da vida brasileira. Odorico Paraguaçu, o político criado pela comédia de Gomes, que escancara e faz troça da vida brasileira.

O primeiro, nascido em 1857 na pequena Vila de Frades, concelho da Vidigueira, distrito de Beja. O terceiro, nascido em 1922, ano da célebre Semana de Arte Moderna de São Paulo (SP), que lançaria para sempre nomes da cultura brasileira lembrados até hoje, na cidade de São Salvador da Bahia. 

E o segundo, nascido em 1969, nas páginas em branco de Dias Gomes, na fictícia cidade de Sucupira, nome de uma árvore, localizada também no Estado da Bahia, onde seria Prefeito, o equivalente a Presidente da Câmara em Portugal. Vale lembrar que o descobridor Pedro Álvares Cabral também desembarcou na ilha de Porto Seguro, que também pertence ao Estado da Bahia. Seria a Bahia sempre o início de tudo e de todos?

Sucupira, curiosamente, é o nome de uma família de árvores, que englobam várias espécies chamadas de fabáceas, árvores que produzem favas, existentes tanto em Portugal quanto no Brasil. Mais uma ligação entre os dois países. Fictício, existente apenas na literatura e nas telas de televisão, o município de Sucupira passou a existir realmente no Estado de Tocantins a partir de 1991, no Brasil, tendo atualmente 2 mil habitantes. A Sucupira fictícia, desconhece-se a quantidade de habitantes, mas seriam os mais divertidos e famosos da dramaturgia.

Além de seu Prefeito Odorico, haveria o fiel escudeiro Dirceu “Borboleta”, o puxa-saco (ou lambe-botas) do Prefeito, que tinha esta alcunha por gostar de colecionar borboletas. E que câmara municipal que não possui essa figura? Destaque também para as irmãs Cazajeiras, três irmãs de idades próximas, solteironas, que possuem como ofício especular e falar mal da vida alheia. Imagine! Não há disso no Alentejo! Quase nunca... 

E mais uma vez voltamos à botânica, pois, cajazeira, e a árvore do cajá, fruta tipicamente brasileira, cuja árvore que chega a medir até 25 metros, da família das anacardiáceas, de casca adstringente, madeira branca, flores aromáticas, e frutos alaranjados, de polpa resinosa e ácida, existente apenas no Brasil. Essa acidez seria o motivo da escolha do apelido das três irmãs?

Fialho de Almeida, não reconhecido nem cultuado na época em que viveu, somente anos depois, assim como Dias Gomes, foi jornalista, cronista, crítico, e não era querido por seu humor ácido e jocoso. Em seus textos, principalmente nas crónicas reunidas no livro “Os Gatos”, que ficou como sua marca registrada, criava palavras e expressões para passar a intenção do que escrevia.

Foi lendo seus textos pela primeira vez que me veio a faísca: onde já tinha lido ou ouvido texto semelhante? E o cérebro maquinava e não conseguia recuperar. Foi quando de uma retrospectiva de personagens de novela, ao ouvir as palavras de Odorico Paraguaçu, da novela O Bem-Amado, é que me veio o estalo: Fialho de Almeida era precursor de Dias Gomes, o criador de Odorico.

Assim como Odorico, Fialho usava e abusava da língua portuguesa, criando expressões próprias para expressar o que queria. Adjetivos viravam advérbios de modo, como por exemplo as brincadeiras que fazia com a palavra grande: grandelesco, grandelescamente. Era quase uma nova língua que ele criava com seus neologismos.

Odorico não ficava atrás. Criava palavras ímpares, como “muito prafrentismo” para adjetivar objetos e pessoas muito avançadas, seus opositores, viraram “calunistas” (os que proferem calúnias) cheios de “caluniamentos”, ou de “desarvorismos”, pessoas que praticavam a “conjuminância” de falar mal dele. Uma oposição “maquievelenta”!

Assim como Fialho, que chegou a ser republicano e monarquista na mesma existência, sempre com forte crítica política, Odorico criou uma postura política: a “democradura”, que reunia o melhor da ditadura e da democracia, num mesmo conceito. Vale lembrar que o autor e seu personagem existiram no auge da ditadura brasileira, e Odorico era uma forma de criticar a sociedade (e seus políticos) de forma velada e ao mesmo tempo divertida.

A criação de verbos novos por Fialho era profícua. Cláudio Bato, em seu estudo A Linguagem de Fialho (1917) identifica mais de 100 verbos criados pelo escritor, alguns curiosíssimos como: alisboetar, arcebispar, encinzeirar, lixiviar, entre outros.

Não é à toa que, na época que Fialho ainda era vivo, fez muito mais sucesso nas terras de lá do Atlântico, do que nas de cá. Sua brincadeira com a língua portuguesa caía bem nas páginas e ouvidos dos brasileiros, fato que era contestado em seu país natal. Seus artigos ácidos sobre a República, depois de proibidos em Portugal, passaram a ser publicados apenas no Brasil, no célebre jornal O Correio da Manhã, um periódico brasileiro, que, em sua primeira fase, foi publicado no Rio de Janeiro, entre 15 de junho de 1901 a 8 de julho de 1974. 

Depois, pouco antes de morrer, ao fazer críticas, desta vez a República Brasileira, foi proibido de escrever para este também. Enfim, os críticos nunca bem aceitos. Fialho e Odorico, criticavam algumas parcelas da sociedade que consideravam “desapetrechadas de inteligência”, como diria o prefeito, uma forma sutil de chamar a sociedade de ignorante.

Em tom de comédia crítica e ácida, como as de Fialho, a peça teatral que depois viraria telenovela, O Bem-amado conta a história do prefeito Odorico Paraguaçu, que tem como meta prioritária em sua administração na cidade de Sucupira a inauguração de um cemitério. De um lado é apoiado pelas irmãs Cajazeiras. Do outro, tem que lutar contra a forte oposição liderada por Vladmir, dono do jornaleco oposicionista da cidade. 

Por falta de defunto, o prefeito nunca consegue realizar sua meta. Nem mesmo a chegada de Ernesto - um moribundo que não morre - e a contratação de Zeca Diabo, um cangaceiro matador, lhe proporcionam a realização do sonho. Odorico arma situações para que alguém morra, mas o primeiro corpo a ser sepultado em Sucupira será o do próprio prefeito, que de caçador se torna caça e passa de vilão à mártir. E quantas histórias parecidas iremos ver na vida real.

Odorico foi criado em 1969, primeiro em forma de peça de teatro, chamada “O Bem Amado ou Os Mistérios do Amor e da Morte”, encenada em Recife, capital do Estado de Pernambuco, no Brasil, pelo icônico ator Procópio Ferreira. Como referência, este era pai de Bibi Ferreira, que fez uma das melhores interpretações de Amália Rodrigues no teatro até hoje, fora de Portugal.

O sucesso foi tanto, que, dos palcos, Odorico foi para a televisão, quatro anos depois, em uma telenovela de 178 capítulos, chamada somente de “O Bem Amado”. Na telenovela seria interpretado pelo ator que o imortalizou: Paulo Gracindo.

Mais uma vez sucesso, voltou às telas da televisão como uma série, desta vez entre 1980 e 1984, quase 20 anos após ter sido criada, com 220 episódios, fazendo o mesmo sucesso como desde o início. Odorico Paraguaçu voltava a ser interpretado por Paulo Gracindo.

Em 2010, “O Bem Amado” vai para as telas do cinema, desta vez sendo interpretado por outro ícone da televisão brasileira, Marco Nanini. E, mais recentemente, em 2017 o texto foi adquirido pelo México, onde se transformou, mais uma vez, em uma telenovela de 96 episódios, sendo Odorico interpretado pelo ator mexicano Jesús Ochoa.

Enfim, um texto que atravessou décadas, ditaduras, governos, críticas, e, do qual, pelas palavras de Odorico Paraguaçu, fica a pergunta: teria Dias Gomes se inspirado em Fialho de Almeida para criar seu personagem? Instala-se a dúvida...

Stevan Lekitsch

Escritor, jornalista, dramaturgo e cineasta



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